terça-feira, 11 de novembro de 2014

Precisamos falar sobre o Kevin

Tema Dificíl, Inúmeras Interpretações

Direção: Lynne Ramsay
Título Original: We need to talk about Kelvin
Duração: 112 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Jan/2012

Há algum tempo não tenho tanta dificuldade para escrever sobre um filme. Precisamos falar sobre Kevin é um espécime bastante peculiar. Explico-me. Assim que os créditos subiram, meu sentimento era de que o filme tinha passeado por diversos pontos e não chegado a lugar algum. O filme termina em um ponto que parece incoerente com tudo que o precedeu e ao mesmo tempo há elementos que o tornam possível. Não me pareceu um filme bom. Contudo, quanto mais penso nele, mais vejo que há conteúdo de sobra e há diversas discussões interessantes esperando para serem iniciadas escondidas entre cores, expressões faciais, pedaços de história.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que fotografia e direção de arte são tocadores de bumbo dessa película. E isso é, novamente de maneira interessante, sua maior força e sua principal fraqueza. A força vem da carga simbólica que é pensada para cada cena. O filme abre com a personagem principal, Eva Khatchadourian, sendo carregada por uma multidão no que parece ser a Tomatina, a festa espanhola do tomate. Lembra uma orgia banhada a sangue. Eva está em êxtase. Eva é uma escritora-viajante, conhece o mundo e vive a vida do ultraurbano feliz e descolado, mas o banho de "sangue" prenuncia o que será a sua realidade. 

São mostrados quatro períodos distintos da vida de Eva que parecem todos ser um único. Os tempos se mesclam para tentar criar uma relação de causa-efeito ou, no mínimo, uma correlação. Cenas são encadeadas com elementos em comum para que o telespectador crie as conexões que não foram mostradas. Tudo é simbólico. Respostas não são dadas, mas induzidas. Eva toma pílulas e bebe, Eva está em choque, Eva está extasiada. Em quase todos os momentos Eva parece estar em um estado que permite interpretarmos que tudo que vemos é visto com os olhos de Eva, tudo se confunde, presente e passado são a mesma coisa. As atitudes das pessoas parece estranha: o filho é excessivamente maligno, o marido estupidamente iludido, a filha absurdamente meiga. Vemos a realidade ou vemos o mundo com as lentes de Eva? 

Tudo isso eleva o filme a patamares superiores, criando camadas de interpretação para cada uma das cenas. No entanto, a estrutura é uma fraqueza ao descreditar a, por assim dizer, camada principal, ou seja, a história "real". Descredita a ponto de, no final, você simplesmente não comprar o desfecho e o filme cair na clássica avaliação "não fez sentido" reservada a exemplares ruins. Mesmo entendendo a dinâmica entre os personagens, é difícil aceitar a conclusão. É uma daquelas situações em que a atitude da personagem parece servir ao roteiro e não ser coerente com ela mesma. Contudo, são pouquíssimas as pessoas na audiência que poderiam efetivamente alegar entender a persoangem, já que pouquíssimas estiveram nessa situação extrema.

Não havia lido ainda o livro no qual o filme se baseou, mas o final foi tão desconcertante, que comecei a ler as primeiras páginas minutos depois do Netflix começar a sugerir filmes similares para continuar assistindo. A estrutura narrativa é completamente diferente e torna o "Precisamos falar sobre Kevin" do título ao mesmo tempo muito mais literal e ainda mais irônico: o livro é escrito na forma de cartas de Eva para o marido Franklin cerca de um ano e pouco depois do fatídico crime de Kevin. Já no início dá para ver que vários pontos que ficam completamente subentendidos no filme, são tratados, ainda que de forma sutil e indireta, com muito mais densidade e aprofundamento. 

Lynne Ramsay, a diretora, quer mostrar em imagens o que no livro é discutido com palavras, muitas palavras. A já centenária expressão "uma imagem vale mais que mil palavras" parece ser o modus operandi de Ramsay. As cores dão o tom e você precisa decifrar expressões faciais, entender o contexto, ligar o ângulo da câmera com o sentimento da personagem e decifrar muitos outros símbolos para poder absorver o que ela está querendo passar. Se no livro você terá várias oportunidades para aprofundar-se na alma de Eva através de suas divagações, auto-enganos e ilusões, no filme você terá que inferir as mesmas coisas a partir de olhares, esgares, trejeitos e expressões corporais. Não há narração, nenhum Morgan Freeman explicando didaticamente o que está acontecendo. 

Considerando isso, é essencial ter como protagonista uma atriz do porte de Tilda Swinton. Ela já tinha feito uma espetacular mãe em um filme de 2001 chamado Até o fim que poucas pessoas viram. Naquele, a mãe faz de tudo para garantir que o filho não seja acusado de assassinato, uma mãe clássica, entregue, muito diferente de Eva. A Eva de Swinton é uma mulher alquebrada, disforme, pálida e destroçada pela culpa. Em uma narrativa clássica, você se identificaria com a "vítima", mas Ramsay e principalmente Swinton não permitem que isso aconteça de forma fácil. Eva não é uma personagem simpática e de fácil identificação, porque Eva, a primeira mãe, a mulher primordial, rejeita e ao mesmo tempo sucumbe a seu papel "natural" e torna-se um alvo fácil para o julgamento não só das outras personagens da história, mas também da audiência.

Ezra Miller, assim como os pequenos Jasper Newell e Rock Duer constroem um Kevin estranho, difícil, diabólico e manipulador, porém, apesar de tais interpretações serem dignas de elogios, o resultado delas cria uma personagem que é um dos principais motivos para a difícil aceitação do desfecho da história. Sobra muito pouco ou quase nenhum espaço para qualquer análise de Kevin que não seja a do sociopata que vai gradualmente aumentando seu nível de maldade. Com um pouco mais de ambiguidade e zonas cinzentas, o filme teria também gradualmente saído no nível muito bom para excelente.

Há algumas tintas feministas de tonalidade forte no vermelho-sangue que rege o filme. Eva, dona de si, viajante, culta, independente passa a ser marionete das personagens masculinas e será apedrejada por não ter aceitado plenamente seu inevitável papel biológico e "natural". Eva submete-se inicialmente ao marido e posteriormente a Kevin, vítima de uma culpa que parece extrínseca a ela. Como conciliar a Eva pré-Kevin com a Eva pós-Kevin? Do pouco que li do livro, a discussão é mais complexa e envolve toda a cultura norte-americana ou mesmo ocidental, o vazio existencialista de nossa geração, passa por consumo e imagem e não necessariamente debruça-se sobre a opressão masculina. Porém, essa é uma interpretação válida como várias outras e daí nasce a força do filme (e mais ainda do livro).

Uma outra linha de interpretação possível é a possibilidade da fatalidade ter sido evitada se o contexto cultural fosse diferente. Precisamos falar sobre Kevin coloca o dedo em uma ferida exposta porque levanta a possibilidade de que talvez a tragédia não houvesse ocorrido se a sociedade não cobrisse de uma aura mítica a maternidade e não ditasse o que é moralmente correto relacionado a relação de uma mãe com um filho. Se Eva encontrasse em Franklin ou em qualquer outra pessoa empatia para seus sentimentos em relação a Kevin, é possível que a vida de ambos, mãe e filho, tivesse se desdobrada de outra maneira.

Apesar de se chamar "Precisamos falar sobre Kevin", o que menos os pais fazem durante o filme é falar sobre o filho. Essa incomunicabilidade, que também ocorre entre Eva e Kevin ou Kevin e Franklin (o pai), é talvez uma das principais chaves para a compreensão dos eventos. A ironia do título é ainda maior porque a mãe é não só escritora, mas uma escritora sobre viagens, que fala sobre outras culturas, tenta entender pessoas muito diferentes dela. Ela consegue entender rituais sagrados de uma tribo de  Bangladesh, mas não o próprio filho.

As discussões podem passar também pela alegoria pois, para somar insulto à injúria, Kevin é geneticamente muito similar à sua mãe. Ezra Miller, que interpreta Kevin adolescente, veste-se de maneira andrógina e tem um rosto muito parecido com o da "estranha" e pálida Tilda Swinton. Essa semelhança permite-nos ver Kevin como um alter-ego de Eva, ou como se ela tivesse expurgado de si um mal inexplicável sobre o qual ela permanecerá sempre responsável por acreditar ser versão monocromática de si mesma. Diferentemente dos horrores de um Alien ou de O bebê de Rosemary em que a mãe carrega o mal em seu ventre, Eva não deu a luz a um mal extrínseco a ela, mas apenas libertou o seu próprio lado sombrio. Como sua homônima bíblica, Eva deu a luz a Caim, mas também a Abel (Celia, a filha, é absurdamente boa) e tornou-se uma casca vazia, cuja moral e ética dependem dos seres a quem ela deu a vida e já não pode controlar.

Precisamos falar sobre Kevin é um ótimo filme que ultrapassa a barreira das suas quase duas horas de duração, abrindo margem para questionamentos posteriores. Acredito que ele fique ainda mais interessante se acompanhado à leitura do livro e estou eu mesmo entregando-me a essa tarefa atualmente (resenha do livro em breve). Vale a pena ver em um dia em que a pedida for por algo mais contemplativo e instigante e não pelo mero entretenimento. Aos amigos que já o viram: precisamos falar sobre esse filme.

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