quarta-feira, 25 de março de 2015

Whiplash - Em busca da perfeição

Um Jazz de uma (ótima) nota só

Direção: Damien Chazelle
Título Original: Whiplash
Duração: 107 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Jan/2015


Whiplash ganhou os prêmios de melhor som, melhor edição e melhor ator coadjuvante esse ano na cerimônia do Oscar. A resenha poderia parar nessa frase, pois ela praticamente delineia exatamente o que esperar do filme: uma edição visceral e pungente, adornada pelas batidas frenéticas e o extasiante efeito do jazz, garante a plataforma perfeita para que um excelente ator encontre o seu momento de glória. E isso é tudo por hoje, pessoal.

Não exatamente.

Seria simplista demais reduzir Whiplash a esses três fatores e desconsiderar outros bons aspectos do filme, porém seu calcanhar de Aquiles é justamente na categoria que mais interessa a mim e ao Crítica em Série: a história, o roteiro, a narrativa. Contudo, antes de falarmos dela, sigamos com os pontos positivos.

Nunca a expressão "sangue, suor e lágrimas" foi tão literalmente trabalhada quanto nesse filme. A edição alterna entre enquadramentos fechados desses fluidos em todas as suas variações possíveis. Tudo é atmosfera e contexto. Cada detalhe precisa intensificar o tema central, a obsessão e toda a transpiração e sacrífico associados. Afinal, o embate de um baterista e seu mentor "em busca da perfeição", como deixa claro o subtítulo do filme no Brasil, não é exatamente o material mais óbvio para um thriller. Para transformar essa premissa em algo emocionante, vai ser necessária muita técnica.

E técnica é o que não falta a um ator veterano como J.K. Simmons, que em Whiplash parece ter alcançado sua apoteose. Simmons definitivamente é um daqueles atores que se destacam em qualquer produção mesmo em papéis menores (vide Oz ou a trilogia original do Homem-Aranha), porém é, ao mesmo tempo, um ator de um único papel (vide Robert Downey Jr.). Fletcher, o regente a quem o ator dá vida, parece ter sido criado especialmente para ele. Fletcher é pura voz e entonação e é só checar a página de Simmons no IMDB para ver que boa parte do seu histórico é composta de trabalhos como dublador em desenhos animados e até jogos (ele é um dos melhores elementos do mais que excelente Portal 2, por exemplo).

Simmons é virtuosidade pura em cena, praticamente impecável, mas não teria tido tanto sucesso se não encontrasse em Miles Teller um oponente à altura. O jovem ator, e também músico diga-se de passagem, consegue misturar em medidas corretas arrogância e prepotência com confusão e insegurança, o que permite a seu Andrew ser simultaneamente vítima e contumaz adversário.

O diretor e também roteirista Damien Chazelle, que ainda não conta com praticamente nada no currículo, conseguiu se afastar absurdamente do festival de bobagens que foi seu roteiro em Toque de Mestre e calcar sua história em elementos dramaticamente mais coerentes. Contudo, a narrativa de Whiplash é um jazz de uma nota só, uma sequência de cenas tematicamente monotônicas, que repetem à exaustão uma única batida.

Andrew e Fletcher são personagens unidimensionais, arquétipos que representam uma ideia e não seres humanos completos. E ainda que isso sirva perfeitamente ao propósito do filme e que a única dimensão que eles possuam seja de uma potência brilhante, eu particularmente gostaria de tê-los visto tocarem mais de uma melodia. Quem é Andrew ou quem é Fletcher além da força motriz que os impulsiona? 

As poucas cenas que tentam ampliar o espectro psicológico dos dois protagonistas, como o romance de Andrew ou a desolação com a morte de um estudante de Fletcher, provam-se apenas subterfúgios para reforçar ainda mais a mensagem principal. Alguém uma vez disse que Dave Matthews não era um vocalista, mas que sua voz era só mais um instrumento da banda. Andrew e Fletcher não são personagens, são apenas engrenagens de um roteiro milimetricamente ajustado.

Minha primeira impressão, ao terminar o filme, foi de ter visto um Cisne Negro sem a profundidade de caracterização e sem os truques narrativos. Uma párabola sobre a obsessão contada em uma única camada. Foram necessárias algumas conversas com amigos e a leitura de um tanto de outras resenhas para começar a avaliar o filme com lentes diferentes. Alguns expectadores vão enxergar perfeição cinematográfica em um roteiro que não foge do seu objetivo nem por um segundo, enquanto que outros, como eu, vão sentir o vazio de uma produção focada em personagens que terminam sua jornada no mesmo ponto em que a iniciaram. O que importa é que independente de que lado você esteja, dificilmente estará indiferente.

terça-feira, 24 de março de 2015

Garota Exemplar (Livro)

A faceta mais aterrorizante do casamento

Considero quase impossível fazer uma análise desse livro sem revelar detalhes da trama. Por esse motivo, segue no primeiro parágrafo, o arremate que estaria reservado ao último: um ótimo livro de suspense que vai fundo em analisar os perigos que rondam um casamento e a difícil dinâmica entre um homem e uma mulher. É diversão garantida com um bom tanto de reflexão e recomendo sem maiores ressalvas.

Vamos agora à análise que pode conter spoilers.

Só para começar: ainda que a tradução do título para o português seja bastante própria para o livro, ela altera consideravelmente a relação do leitor com o mesmo. No original, em inglês, Gone Girl, você pode entender "Garota que se foi" em seu sentido mais literal e que é totalmente apropriado para uma história cujo tema principal é o desaparecimento de uma mulher, mas você pode também aceitar o seu sentido metafórico como a garota já não está mais lá ou já se tornou outra pessoa. Nos dois casos estaríamos falando de uma garota genérica, como se representasse toda e qualquer mulher.

Garota Exemplar, o título em português, remete a uma temática muito específica, de uma garota que não comete erros, que faz tudo o que se espera dela. Algo extremamente em linha com um dos pontos mais relevantes do livro, mas que não representa o que me parece ser a intenção original da autora. Cito esse assunto apenas como uma ponderação, porque admito que seria difícil uma tradução que capturasse a essência do título original.

Garota Exemplar é um exemplo do que os americanos sabem fazer de melhor: replicar modelos de sucesso. Parece um livro escrito com uma fórmula ou roteiro com regras e métricas sobre o que inserir ou revelar em cada momento. Ele apresenta os personagens e inicia a ação rapidamente e vai distribuindo pequenos ganchos a cada, no máximo, 15 ou 20 páginas, fazendo com que o interesse se perpetue (estilo Dan Brown). Só que mesmo que a técnica seja perfeita, seria muito difícil alcançar o sucesso sem um tema que falasse diretamente à alma do leitor: no caso de Garota Exemplar, a incomunicabilidade entre o homem e a mulher e a difícil missão a que eles se propõe de manter um casamento. 

Boas histórias de terror e suspense são aquelas que intensificam o lado perverso de algo que culturalmente consideramos positivo. Quando você transforma a gestação e o nascimento de uma criança em algo perverso, por exemplo, você atinge mais profundamente sua audiência. Em Garota Exemplar, o protagonista monstruoso é a relação de Amy e Nick e principalmente o seu casamento. Pequenas frustrações ou dificuldades de comunicação que permeiam o casamento de qualquer pessoa são amplificadas até atingirem níveis surreais. Contudo, como são calcadas na realidade, sempre fica a sensação de que "poderia acontecer comigo".

Amy e Nick, os polos dessa relação tão doentia quanto usual, são personagens construídas para parecerem reais, mas ao mesmo tempo funcionarem como arquétipos do masculino e do feminino, tanto das características boas, quanto das menos desejáveis. Amy é é uma sociopata, mas é tão fácil me identificar com ela que chego até a ter medo. Nick também é um sociopata, mas como homem não é difícil empatizar com suas angústias e seu desespero. As duas personagens são incríveis, mas Amazing Amy é de longe a que merece um lugar na minha memória eternamente. Se não por mais nada, pelo seu monólogo no início do segundo ato do livro e suas reflexões sobre a "garota legal (cool)".

Falando em segundo ato, vale mencionar que a estrutura narrativa e o formato da história são outros atrativos do livro. Alterna entre a narração em primeira pessoa por parte de Nick, conforme os eventos se desenrolam após o desaparecimento, e a exposição do diário de Amy que desvenda a vida anterior do casal na forma de flashbacksAmy em seu diário desenvolve o relacionamento dos dois desde o momento em que se conheceram e sua visão é contraposta às lembranças e reminiscências de Nick nos dias atuais, formando um painel de expectativas e desilusões antagônicas e tristemente familiares.

Infelizmente, para leitores e expectadores de mistérios e thrillers, uma das revelações principais acaba não causando o espanto que deveria, mas os pequenos ganchos de cada um dos curtos capítulos mantêm um ritmo fluido e o interesse não diminui (terminei o livro em praticamente uma sentada). É necessário também que se suspenda a descrença em algumas passagens que forçam a mão, mas no ponto em que elas acontecem você já está tão interessado no destino de Nick e de Amy que vai deixar passar muita coisa.

Como normalmente acontece, muita gente vai deixar de ler esse livro e conhecer a história apenas pelo ótimo filme do diretor David Fincher. Infelizmente o papel tem muito mais a oferecer do que o que é mostrado nas mais de duas horas de tela. Amy e Nick são muito complexos e há muito mais a se absorver deles do que simplesmente ouvir e ver a sua história.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)

Tecnicamente irrepreensível, mas...

Direção: Alejandro Gonzáles Iñárritu
Título Original: Birdman or (The unexpected virtue of ignorance)
Duração: 119 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Jan/2015

Birdman ou (A inesperada virtude da ignorância) ganhou o último e mais importante prêmio da cerimônia do Oscar, o de melhor filme. Levou também os prêmios de melhor diretor, fotografia e roteiro original. Foi justo? Como acontece com quase todas as perguntas para as quais damos pelo menos uma certa importância na vida, a resposta é simplesmente "depende". Depende muito do que você espera de um vencedor do Oscar, depende dos seus valores, depende da sua conexão emocional com o filme, dentre outros parâmetros.

Pessoalmente, se tivesse que escolher o melhor filme desse ano, teria dado a estatueta para O Grande Hotel Budapeste. Acredito que um Wes Anderson merece ganhar pelo menos uma vez e vai ser difícil você conseguir ser mais Wes Anderson do que em O Grande Hotel Budapeste. Assisti a apenas mais três dos filmes que concorreram, mas por trailers e cenas que já rodaram na internet e na própria cerimônia do Oscar, entendo que Birdman tenha levado o prêmio porque ousou tecnicamente, acertou no roteiro e foi muito feliz na escolha de seu elenco. 

A ousadia de Birdman evidencia-se principalmente no formato que é puro experimentalismo e descarada vontade de mostrar que "sim, é possível" fazer um filme inteiro como um grande plano-sequência. O prêmio de fotografia (ou atualmente cinematografia) era uma barbada, já que boa parte da diversão do filme é tentar entender onde foram feitos as quebras entre as cenas ou como certas tomadas que atravessam grades, paredes etc, foram realizadas.

Talvez seja um pouco de exagero adjetivar o roteiro como inovador, mas fato é que ele ao menos não é tradicional e fala de temas que tocam a sensibilidade dos tais "membros da Academia", aquelas figuras míticas que são citadas a todo minuto na cerimônia do Oscar, mas que ninguém parece saber exatamente quem são. Birdman narra os dias que antecedem a estreia na Broadway de um ator mundialmente conhecido por ser um pioneiro da onda de filmes de super-heróis que tomou conta de Hollywood nas duas últimas décadas. 

Riggan Thomson, interpretado por Michael Keaton, quer provar para o mundo e para si mesmo que é mais que um corpo em uma roupa de látex fingindo voar pela cidade. Para isso ele escreve, produz e protagoniza uma peça baseada em um antigo material de Raymond Carver. Somando ao estudo de personagem que já surgiria dessa premissa estão elementos fantásticos e metafóricos associados à psique de Riggan: ele acredita que tem (ou realmente tem) poderes super-humanos como seu antigo alter-ego, o super-herói Birdman (alter-ego esse que está constantemente discutindo com Riggan).

Se alguém associou a escolha de Michael Keaton ou Birdman com a série de filmes do Batman, tome aqui uma sardinha. Não só ele, mas também alguns de seus companheiros de elenco são profissionais conceituados que também já colocaram seu talento em prol da quadrinização do cinema. Emma Stone e Edward Norton, no entanto, levaram suas indicações aos prêmios de melhor ator e atriz coadjuvante sem muito esforço, tendo acertado em cheio uma ou duas cenas (Norton mais que Stone), mas Keaton permanece a maior parte do tempo em tela e muitas vezes está irreconhecível. Não levou o Oscar, mas arrebatou vários outros prêmios nas semanas que antecederam a cerimônia. 

A performance de Keaton não é pro meu gosto pessoal, pois ele parece uma versão melhorada (e muito) da escola cocainômana de atuação Fábio Assunção, sempre se movendo, sempre de olhos arregalados e tensos, mesmo quando a cena pede uma postura mais relaxada (que são poucas no caso de Birdman). Porém é impossível não admitir que foi um trabalho de atuação digno de aplausos e que nos deixa, no mínimo, uma cena antológica em que ele anda de cuecas pela Times Square, enquanto é assediado por fãs.

A superposição do fantasioso com o real, a loucura metafraseando a realidade, os paralelos das carreiras dos atores envolvidos no filme com o que os personagens estão vivendo: todas essas camadas tornam a experiência de Birdman muito mais interessante do que a de seus concorrentes. Além da experiência estética, das boas atuações, soma-se esse roteiro que brinca em seus diálogos e situações com símbolos e metáforas de uma maneira orgânica e inteligente.

E se a cinematografia, o roteiro e as atuações beiram o impecável, por outro lado, há aspectos que podem criar uma sensação de desconexão ou afastamento do expectador com o filme. Birdman é, por exemplo, bastante exaustivo e cansativo. Todos os personagens são intensos, todas as emoções estão constantemente a extravasar pela tela. Não há alívio, não há mudança de tempo, são duas horas em uma batida forte e mesmo quando o ritmo dá uma trégua (nas cenas de Riggan com sua ex-esposa, por exemplo), há um mal-estar ou uma tensão oculta no ar.

Além disso, fora do meio artístico e principalmente do cinema/teatro, é difícil se conectar com o dilema vivido pelo protagonista (ainda que seja relativamente fácil de compreende-lo). É como se eu conseguisse perfeitamente entender o que o filme está querendo entregar, mas não valorizar a mensagem. Essa falta de empatia não me permite apreciar o filme tanto quanto o meu lado racional acredita que deveria.  

No discurso no Oscar, o diretor Alejandro Iñarritu mencionou, para meu espanto, ter ficado feliz de finalmente fazer uma comédia. Uma declaração que só faz sentido se acreditarmos que seja uma tremenda ironia ou se buscarmos um nível muito mais conceitual do que seria uma comédia. Ainda que haja momentos, e muitos, tragicômicos, a tragédia é quem dá o tom e faz-se muito mais imponente nessa tour-de-force teatral. Contudo, quando fica dificíl encaixar uma obra de arte em uma caixinha específica já é um bom sinal de que algo de interessante está acontecendo ali.

Mais Oscar 2015 no Crítica em Série: