sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A menina da neve

Perdido na Tradução


Na capa do livro uma menção à autora ter sido finalista do prêmio Pulitzer ao lado do preço promocional de quinze reais para uma edição de mais de trezentas páginas e bom acabamento. No painel de chegadas e partidas, um aviso de atraso do voo. Essa combinação fez parar em minhas mãos A menina da neve, livro de estreia da norte-americana Eowyn Ivey. Como passatempo ou leitura despretensiosa, a aquisição não planejada certamente compensou seu baixo custo, mas algo deve ter se perdido na tradução, pois o texto é de uma simplicidade que não justificaria a atenção recebida em seu país de origem.

Um conto russo chamado Snegurochka, ou "a dama da neve", é a base em que a autora constrói seu emocionante relato sobre a vida no Alaska no começo do século XX. Na versão original, assim como em sua variação, um casal mais velho e sem filhos faz um boneco de neve que ganha vida, e assim nasce a menina do título. No livro de Ivey, o casal protagonista é formado por Jack e Mabel, personagens marcados por um evento trágico que vão para o estado mais gelado da federação americana para recomeçar a vida, fugindo de lembranças ruins.

A principal arma narrativa da autora é a tensão entre realidade e fantasia. Após o primeiro encontro com a menina que supostamente surgiu da neve, os protagonistas se revezam no papel de cético ou de crente. A autora trilha tanto a senda da fábula moralizante quanto a do conto de sobrevivência realista, desajeitadamente se acomodando em uma espécie de realismo fantástico anglo-saxônico, ao qual falta o exotismo dos seus congêneres latino-americanos, com seus personagens de emoções afloradas e expostas que parecem navegar mais facilmente pelo absurdo do que os sisudos e pragmáticos norte-americanos. Essa dicotomia, no entanto, funciona na maior parte do tempo, ainda que em alguns trechos, talvez pela falta de melhor adaptação na tradução, os sentimentos e reações das personagens parecem não se adequar às situações.

Ainda que seja baseado em um conto-de-fadas, A menina da neve explora um território distante do felizes-para-sempre, e já nas primeiras páginas uma de suas protagonistas tenta abandonar a trama se afogando em um rio gelado. Ela é impedida pela densa camada de gelo superficial e o frio, o inverno e a neve serão a partir daí um elemento importante e ativo no restante da história, seja literalmente ou em todas as suas versões metafóricas e simbólicas, como o silêncio entre um casal, a temperatura de um corpo agonizante ou a frieza necessária para a sobrevivência.

Ivey também insere discussões sobre perda, maternidade, ligações familiares, as escolhas que fazemos nas nossas vidas e a importância do legado que deixamos através dos nossos filhos. Porém, todas essas divagações são rasas, óbvias e muitas vezes de um didatismo incômodo. A narrativa sai-se muito melhor quando concentra-se em sua camada mais mundana e factual, nas dificuldades de sobrevivência na fronteira setentrional dos EUA, na luta das personagens contra a fome, o frio, os animais selvagens e as noites infinitas de inverno. A autora, natural do Alaska, descreve com excelência a fauna, a geografia e o perfil da população que se dispôs a viver em local tão inóspito e extrai disso o maior valor do seu livro.

A tradução nacional deixa escapar alguns poucos erros de concordância e, de maneira geral, escolhe construções gramaticais que não soam naturais para o português. Esse estranhamento nasce de uma decisão por uma adaptação mais literal e pouco flexível. Parece fruto de um profissional competente de tradução, mas não de um escritor propriamente dito (esse normalmente adiciona sua própria voz ao texto original para, paradoxalmente, garantir mais autenticidade).  A própria autora tenta experimentos linguísticos que já parecem artificiais ainda em inglês. Ela tenta criar imagens e estruturas originais que acabam soando primárias, mais pretensiosas do que artísticas, marcas da inexperiência de uma escritora que ainda está se encontrando. 

Os deslizes técnicos, contudo, não diminuem a força de uma boa, ainda que simples e tradicional, história. Um conto fantástico, triste e belo ao mesmo tempo, que ganha mais relevância pela competência na construção do ambiente, tanto físico quanto temporal, A menina da  neve deve conseguir arrancar lágrimas de boa parte dos leitores (confesso que fui um deles) e agradar em cheio aos fãs de (melo)dramas históricos e sagas familiares. Se é emoção e uma certa dose de nostalgia por tempos não vividos que o leitor procura, esse é um livro que não deve decepcionar.