domingo, 12 de abril de 2015

Demolidor

Os tentáculos se expandem 


Temporadas: 1
Episódios: 13

Demolidor é uma franquia da Marvel considerada por muitos anos como de segundo ou até de terceiro escalão. Ganhou notoriedade e juntou-se aos figurões da editora quando Frank "O Cavaleiro das Trevas" Miller abordou o personagem com uma pegada mais sombria e realista. O escritor introduziu personagens importantes como Elektra, Stick e o Tentáculo e posicionou o Rei do Crime como o grande arqui-inimigo do herói. Miller é também responsável pela "origem definitiva" do Demolidor com a mini-série O Homem sem Medo e por uma das melhores histórias dos quadrinhos de super-heróis em geral: A Queda de Murdock. A saga mostra a vida de Matt Murdock sendo meticulosamente destruída pelo Rei do Crime quando o vilão descobre a identidade secreta do herói (pouco provável que não seja o tema de alguma temporada da série).

Acertadamente, são o clima e os conceitos criados por Miller e refinados posteriomente por grandes escritores como Kevin Smith (Guardian Devil), Brian Michael Bendis (Underboss, Decalogue, Out) e Ed Brubaker (The Devil Inside and Out) que fazem de Demolidor, a série da Netflix, um dos melhores produtos da Marvel Studios até o momento. O conflito entre o advogado e o justiceiro, a corrupção e a decadência da Cozinha do Inferno, a potência das filosofias orientais contra a angústia católica do herói, são temas que saem do papel para fielmente serem traduzidos para a tela.

A mais agradável surpresa e um dos aspectos mais positivos da série foi a decisão dos roteiristas de não utilizar a preguiçosa solução de "caso da semana" que seria óbvia considerando a profissão de Murdock. Mesmo ótimas séries como Hannibal  e Justified não conseguiram fugir, ao menos no ínicio, desse modelo. A revolução causada pelo Netflix com a entrega de todos os episódios de uma única vez obriga um distanciamento do tradicional modelo procedural e nós só temos a ganhar com isso. Até mesmo a TV aberta já foi forçada a começar a se adaptar e séries como How to get away with murder já trabalham com menos episódios e um híbrido entre o procedural e o serializado.

Em seus treze episódios, Demolidor conta uma única história do começo ao fim e o enredo avança em cada um deles, ainda que todos tenham cenas expositivas e redundantes. Há um arco fechado tanto para seu protagonista quanto para os principais personagens secundários e tecnicamente, em termos de narrativa, é difícil apontar problemas. A trama em si envolve o desmantelamento de uma complexa operação criminosa (drogas, corrupção, especulação imobiliária etc.) no bairro Cozinha do Inferno e é bastante tradicional, previsível, quase entediante. Felizmente, ela serve apenas como pano de fundo para que outros elementos mais interessantes sejam desenvolvidos.

O principal desses elementos é certamente a construção dos personagens. Charlie Cox (Stardust, Boardwalk Empire) encarna Matthew Murdock com o desespero de quem reconhece o ponto de virada de uma carreira. Ele injeta charme e carisma no advogado cego, mas também uma camada de melancolia subjacente. Mesmo quando seu personagem sorri, fica sempre a sensação de que há algo mais sombrio e atormentado por trás das palavras. O ator consegue ser o centro de todas as cenas em que aparece, com exceção das em que contracena com Vincent D'Onofrio.

Os primeiros episódios abordam principalmente os dilemas de Matt, mas cada personagem secundário ganha protagonismo por um ou dois episódios. Esse esquema é brilhantemente trabalhado para que o arco dos personagens secundários se interconecte com o enredo principal em momentos diferentes, garantindo que a trama principal não pare para dar espaço a desenvolvimento de personagens. Revezam-se nessa posição Karen Page (o interesse romântico), Foggy Nelson (o melhor amigo), Stick (o mestre) a enfermeira Claire (o sidekick) e obviamente o vilão da temporada, Wilson Fisk.

Wilson Fisk, o Rei do Crime (denominação que não é utilizada na série em nenhum momento), é o antagonista ideal para Matt Murdock e o personagem beneficia-se da atuação comprometida de Vincent D'Onofrio (Law and Order). Tanto Murdock quanto Fisk acreditam estar lutando pelo mais nobre dos objetivos e enxergam em seu nêmesis o principal obstáculo para atingi-los. Ambos agem de maneira moralmente questionável e o expectador pode ficar com a impressão que a única coisa que os separa é onde eles traçam a linha do que é aceitável ou não. Fisk termina sendo quase tão protagonista quanto o próprio Murdock e é construído com a mesma complexidade e densidade psicológica de seu opositor. Suas cenas com Vanessa, interpretada pela ótima atriz israelense Ayelet Zurer, são algumas das melhores do show.

Outro personagem importante é Karen Page, interpretada por Deborah Ann Woll (True Blood), que passa a trabalhar como secretária na firma de advogados já no começo da história. Ao contrário da personagem dos quadrinhos que inspirou sua criação, a Karen de Woll não é apenas um objeto de cena. Longe de ser somente a ponta de um triângulo amoroso ou potencial vítima do enredo, Karen protagoniza um arco completo que segue paralelamente à história de Matthew durante toda a temporada. Ainda que a investigação conduzida por ela torne-se redundante rapidamente já que a trama principal chega no mesmo resultado muito antes, é um movimento correto da Marvel no que refere-se ao tratamento de suas personagens femininas.

Os aspectos mais técnicos também são dignos de nota. A fotografia adequa-se perfeitamente ao clima, abusando de tons amarelo-acinzentados que dão uma vibe noir pra história - uma das principais graphic novels do herói é justamente Demolidor: Amarelo, que usa do mesmo expediente. As cenas de ação, com ótimas coreografias para as lutas e perseguições no estilo parkour, ficam no limite do realismo: o Demolidor não possui super-força e nem gadgets e tem que se virar apenas com agilidade e técnica. E também não há mortes assépticas como as dos "raios vaporizadores" de Capitão América, violência é o que não falta no programa.

Contudo, apesar de todos os aspectos positivos, Demolidor ainda sofre da previsibilidade e do exagero de cenas expositórias típicas dos produtos Marvel Studios. Sempre divertido, sempre competente, mas ao mesmo tempo burocrático e limitado pelos problemas do gênero. Por mais interessante que algumas cenas sejam, a suspensão da descrença tem que ser muito alta para que elas funcionem. A conexão entre as subtramas é tão coreografada quanto as cenas de luta. A fórmula é tão óbvia quanto a de um desenho da Disney. Mesmo algumas das surpresas deixadas para o final da temporada só têm algum impacto porque fogem da realidade dos quadrinhos e em segunda análise são menos relevantes do que parecem.

E, por mais fiel que seja ao material original, as piadinhas, as frases de efeito que são mais do que características da "Casa de Ideias", soam cansativas e um pouco ridículas em alguns momentos. Foggy Nelson, por exemplo, é um personagem que não fez uma boa passagem do papel para a tela. Já que a intenção era mudar o tom, dar mais seriedade, porque não fazer a mudança completa? Porque não deixar de lado a muleta e construir Foggy como uma pessoa de verdade e não só um alívio? E se não bastassem as tiradas tentativamente cômicas, ainda temos que suportar rasas lições de vidas que todos os personagens parecem ter para passar para quem quiser (ou não) escutar.

Com Demolidor, a Marvel estende seus tentáculos gananciosos em mais um gênero e aumenta a sua base de fãs. Não é preciso gostar de super-heróis para gostar da série, apenas de histórias policiais e ação. Se você é um fã de Dexter ou mesmo de programas mais densos como Hannibal ou The Wire, Demolidor pode até não agradar, mas não deve ofender. E o show ainda faz parte de um universo em expansão, com mais três séries saindo nesse e no próximo ano com personagens similares (Jessica Jones, Punho de Ferro e Luke Cage), culminando com a junção de todos na mini-série Os Defensores. Longe de ser, no entanto, a obra-prima que a mente coletiva da internet tem tentado construir, Demolidor é um agradável entretenimento feito com competência e que talvez mereça a sua atenção.