sexta-feira, 12 de agosto de 2016

A Entidade 2

Como piorar o que já era ruim

Direção: Ciarán Foy
Título Original: Sinister 2
Duração: 97 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Set/2015


A Entidade (2012) contava com méritos técnicos, em especial a qualidade da atuação, que nos permitiam perdoar os inúmeros pecados cometidos pela direção e pelo roteiro. Sua sequência, no entanto, não só carece de elementos redentores, como também potencializa os vícios e delitos do original. E com a mecânica do horror já estabelecida (crianças são cooptadas por uma entidade sobrenatural a assassinar suas famílias e documentar o ato em filmes), a atmosfera de mistério e suspense se dissipa e restam apenas sustos baratos e crueldade sem propósito. 

O roteiro de A Entidade 2 é uma tíbia carcaça conectando despropositadas, ruidosas e súbitas aparições do "bicho-papão" com os violentos, mas em última instância inócuos, vídeos caseiros. A estratégia é fazer com que o espectador instintivamente pule da cadeira com a repentina elevação do volume da trilha sonora ou que se contorça com as atrocidades perpetradas nas películas. Nenhuma das táticas é efetiva.

O apelo dos vídeos no filme anterior, por exemplo, calcava-se não só no contraste da violência com o idílico familiar, mas também na inocente banalidade das armas utilizadas: aparadores de grama, facas de cozinha, cordas etc. Nessa nova iteração, a crueldade parece ter saído do Manual de Horrores do Capitão Planeta: água, eletricidade, gelo, fogo e animais são os protagonistas de elaboradas máquinas da morte de causar inveja à Inquisição Espanhola. Os facínoras infantis necessitariam não só de muito planejamento como, em alguns casos, de força bruta adulta para a execução e a verossimilhança então manda lembranças. Além disso, não há impacto emocional já que as vítimas não têm fala, nome e, pela qualidade dos filmes ou por estarem encapuzadas, sequer têm rosto. Violência estilizada e desprovida de sentido.

Já os sustos, que são em grande parte protagonizados por Bughull, a "entidade" do título, são apenas isso, sustos. Não há tensão. O monstro nunca causa mal algum aos protagonistas ou parece ser uma ameaça efetiva. Ele é o bicho-papão na acepção mais infantil da palavra: aparece de algum canto escuro apenas para fazer "BÚ". O "monstro" poderia, contudo, ter sido trabalhado como uma metáfora para a disfuncionalidade das famílias ou para abuso infantil e, à maneira do primeiro filme, poderia ser retratado como uma espécie de stalker ou voyeur, sempre a observar da escuridão, um predador na iminência de saltar sobre suas presas. 

Essa linha de pensamento não fugiria à proposta do filme. O fiapo de trama da família protagonista envolve violência doméstica. Essa história, no entanto, não é direta ou indiretamente associada a de Bughull ou a dos vídeos caseiros. Não há indícios de que as outras famílias nos vídeos também tivessem problemas ou sofressem com os mesmos dramas. Outras possibilidades de simbolismo, mesmo os mais óbvios, são descartadas: o uso do porão para representar o subconsciente do menino se perde quando a direção evidencia que a ação se passa literalmente no porão sem deixar margem para ambiguidade. 

Os problemas narrativos, contudo, não estão restritos às esferas conceituais e temáticas. Os diálogos são truncados, sem criatividade e muitas vezes constrangedores. As personagens, sem exceção, são clichês e esterótipos com uma única dimensão. O pai das crianças, o pior exemplo da ausência de nuances, é, por si só e mesmo com pouco tempo de tela, motivo suficiente para desqualificar a produção. Porém, a pior decisão de roteiro foi transformar uma personagem que só poderia ser (mal) escalada como alívio cômico (e era esse seu papel no primeiro filme) em protagonista. 

A Entidade 2 é, enfim, um filme B. Leva-se a sério, mas é involuntariamente risível. Tem um roteiro infantilizado, mas com orçamento de gente grande, e só por isso consegue ter um mínimo valor. Recomendado apenas para os fãs do gênero que, como eu, acabam vendo por falta de opções. A maior parte dos filmes de terror, afinal, consegue ser ainda pior.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

A menina da neve

Perdido na Tradução


Na capa do livro uma menção à autora ter sido finalista do prêmio Pulitzer ao lado do preço promocional de quinze reais para uma edição de mais de trezentas páginas e bom acabamento. No painel de chegadas e partidas, um aviso de atraso do voo. Essa combinação fez parar em minhas mãos A menina da neve, livro de estreia da norte-americana Eowyn Ivey. Como passatempo ou leitura despretensiosa, a aquisição não planejada certamente compensou seu baixo custo, mas algo deve ter se perdido na tradução, pois o texto é de uma simplicidade que não justificaria a atenção recebida em seu país de origem.

Um conto russo chamado Snegurochka, ou "a dama da neve", é a base em que a autora constrói seu emocionante relato sobre a vida no Alaska no começo do século XX. Na versão original, assim como em sua variação, um casal mais velho e sem filhos faz um boneco de neve que ganha vida, e assim nasce a menina do título. No livro de Ivey, o casal protagonista é formado por Jack e Mabel, personagens marcados por um evento trágico que vão para o estado mais gelado da federação americana para recomeçar a vida, fugindo de lembranças ruins.

A principal arma narrativa da autora é a tensão entre realidade e fantasia. Após o primeiro encontro com a menina que supostamente surgiu da neve, os protagonistas se revezam no papel de cético ou de crente. A autora trilha tanto a senda da fábula moralizante quanto a do conto de sobrevivência realista, desajeitadamente se acomodando em uma espécie de realismo fantástico anglo-saxônico, ao qual falta o exotismo dos seus congêneres latino-americanos, com seus personagens de emoções afloradas e expostas que parecem navegar mais facilmente pelo absurdo do que os sisudos e pragmáticos norte-americanos. Essa dicotomia, no entanto, funciona na maior parte do tempo, ainda que em alguns trechos, talvez pela falta de melhor adaptação na tradução, os sentimentos e reações das personagens parecem não se adequar às situações.

Ainda que seja baseado em um conto-de-fadas, A menina da neve explora um território distante do felizes-para-sempre, e já nas primeiras páginas uma de suas protagonistas tenta abandonar a trama se afogando em um rio gelado. Ela é impedida pela densa camada de gelo superficial e o frio, o inverno e a neve serão a partir daí um elemento importante e ativo no restante da história, seja literalmente ou em todas as suas versões metafóricas e simbólicas, como o silêncio entre um casal, a temperatura de um corpo agonizante ou a frieza necessária para a sobrevivência.

Ivey também insere discussões sobre perda, maternidade, ligações familiares, as escolhas que fazemos nas nossas vidas e a importância do legado que deixamos através dos nossos filhos. Porém, todas essas divagações são rasas, óbvias e muitas vezes de um didatismo incômodo. A narrativa sai-se muito melhor quando concentra-se em sua camada mais mundana e factual, nas dificuldades de sobrevivência na fronteira setentrional dos EUA, na luta das personagens contra a fome, o frio, os animais selvagens e as noites infinitas de inverno. A autora, natural do Alaska, descreve com excelência a fauna, a geografia e o perfil da população que se dispôs a viver em local tão inóspito e extrai disso o maior valor do seu livro.

A tradução nacional deixa escapar alguns poucos erros de concordância e, de maneira geral, escolhe construções gramaticais que não soam naturais para o português. Esse estranhamento nasce de uma decisão por uma adaptação mais literal e pouco flexível. Parece fruto de um profissional competente de tradução, mas não de um escritor propriamente dito (esse normalmente adiciona sua própria voz ao texto original para, paradoxalmente, garantir mais autenticidade).  A própria autora tenta experimentos linguísticos que já parecem artificiais ainda em inglês. Ela tenta criar imagens e estruturas originais que acabam soando primárias, mais pretensiosas do que artísticas, marcas da inexperiência de uma escritora que ainda está se encontrando. 

Os deslizes técnicos, contudo, não diminuem a força de uma boa, ainda que simples e tradicional, história. Um conto fantástico, triste e belo ao mesmo tempo, que ganha mais relevância pela competência na construção do ambiente, tanto físico quanto temporal, A menina da  neve deve conseguir arrancar lágrimas de boa parte dos leitores (confesso que fui um deles) e agradar em cheio aos fãs de (melo)dramas históricos e sagas familiares. Se é emoção e uma certa dose de nostalgia por tempos não vividos que o leitor procura, esse é um livro que não deve decepcionar. 

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

007 contra Spectre

 De segunda mão e ultrapassado

Direção: Sam Mendes
Título Original: Spectre
Duração: 148 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Nov/2015


As luzes se apagam. Na tela, uma tomada aérea da Cidade do México em pleno dia dos mortos. A câmera encontra o protagonista esgueirando-se por uma multidão de foliões e começa a segui-lo em um plano-sequência sem cortes aparentes que culmina na primeira, e insuspeitadamente a melhor, cena de ação do filme. Uma sequência competente, bem coreografada, ainda que flerte abertamente com a inverossimilhança (uma premissa, no entanto, em filmes da franquia). O espião mais elegante do mundo sai vitorioso, como era de se esperar, e os créditos iniciais invadem a tela acompanhados pelos irritantes falsetes de Sam Smith para a música-tema  Writing in the wallSegue-se mau gosto e breguice ímpares (a primeira tomada, por exemplo, mostra Daniel Craig sem camisa indiferente a duas mulheres  que lascivamente o acariciam em meio a chamas). Os primeiros minutos de filme até pareceram auspiciosos, mas a partir dessa abertura kitsch 007 contra Spectre entra em uma máquina do tempo para revisitar equivocadamente a história da série.

A era Craig até teve um ótimo início com Cassino Royale, uma abordagem renovada e suficientemente original para um gênero exausto, um filme com personagens memoráveis como o sinistro Le Chiffre, o vilão interpretado pelo talentoso e não menos intrigante Mads Mikkelsen (Hannibal), ou como a Bond Girl sensual e enigmática vivida por Eva Green. Depois passou pelo impenetrável e confuso Quantum of Solace, um filme do qual poucas pessoas sabem dizer de memória qual era a trama. Enfim, Sam Mendes assumiu a direção em Skyfall e aprofundou minimamente um protagonista que sempre foi mais um artifício da trama do que uma personagem propriamente dita. Mendes ficou para (supostamente) fechar a passagem de Craig com um filme ambicioso, mas que só consegue repetir todos os clichês mais antiquados do gênero e reciclar cenas e ideias dos filmes anteriores.

Bond vai para cama com as mulheres depois de passar dois minutos com elas e jura amor eterno depois de longuíssimos dois dias juntos. Em uma cena "inédita", Bond é torturado em frente ao vilão, enquanto cospe ameaças que logo se pagarão. E como remexer no passado do herói foi elogiado pela crítica em Skyfall, por que não inventar laços familiares complicados que nunca foram mencionados em mais de cinquenta anos de filmografia? Tudo em Spectre parece reciclado, reutilizado, repaginado. Poder-se-ia falar em "homenagem" a momentos e períodos célebres da série, mas o resultado soa menos como tributo e reverência e mais como pura falta de criatividade e coragem.

Talvez a mais incômoda característica de Spectre seja que o filme pretende ser um fechamento que interlace e conclua todos os anteriores, mas executa esse plano da maneira mais preguiçosa possível. Mendes quer tentar nos convencer de que tudo foi arquitetado para construir a apoteose de Spectre, mas, sem qualquer menção em filmes anteriores, a única ligação é que todos os vilões dos filmes anteriores trabalhavam para o vilão de Spectre. Talvez se o vilão ou o interesse romântico do novo filme tivessem dado as caras, mesmo que apenas como referências, nos episódios anteriores, ou se houvesse uma ligação real entre as personagens e não uma criada em poucos minutos de tela, talvez o filme tivesse atingido parcialmente o impacto esperado.

Essa falta de vigor narrativo impacta também as atuações. Craig, burocrático, parece estar apenas simulando suas próprias interpretações prévias e não encarnando efetivamente o personagem. Ainda que, em favor do ator, ele faz o que pode com o que lhe reservaram: piadinhas requentadas, cantadas baratas, cenas de ação sem qualquer tensão ou inovação. Ao sempre excelente Christoph Waltz é relegado um vilão cartunesco que parece mais adequado ao paródico Austin Powers ou a um período mais ingênuo da franquia 007. A própria organização criminosa Spectre estaria mais à vontade em um filme dos Vingadores do que em um que se presta a uma vertente mais realística.

Nunca fui fã de James Bond e confesso que só comecei a dar uma chance aos filmes da série no período atual seduzido pela crítica que o classificava como "cerebral", uma visão pós-modernista do personagem, uma revisão da masculinidade e outras subjetividades do tipo. Spectre foge desses progressismos e tenta reintroduzir conceitos ultrapassados e não mais adequados para uma nova audiência. Contudo, para quem não estava satisfeito com o rumo atual da franquia (e provavelmente também não esteja satisfeito com o rumo atual do mundo em geral), ou para quem estava com saudades de tempos mais ingênuos, simplórios e formulaicos, tempos de respostas fáceis e de matizes bem definidas, enfim, para essa audiência, é bem possível que Spectre agrade em cheio.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Wayward Pines

Shyamal... Quem?

Temporadas: 1
Episódios: 10
Situação: Concluída
Emissora: Fox
Showrunner: Chad Hodge (M. Night Shyamalan como produtor-executivo)

Imagine um giroflex com sua intensa luz vermelha girando na escuridão acompanhada de uma insistente sirene zunindo irritantemente e impedindo que você consiga pensar em qualquer outra coisa. Com essa imagem quero deixar dois alertas para você: passe longe de Wayward Pines e, caso vá ignorar o primeiro aviso, saiba que os próximos parágrafos vão estar repletos de spoilers.

Vendida como "Twin Peaks encontra Lost" e ostentando a "grife" M. Night Shyamalan (Sexto Sentido e... Outros filmes ruins), Wayward Pines deveria pagar penitência (Shame! Shame!) por sequer ousar comparar-se a esses marcos da televisão norte-americana. Há muito pouco da atmosfera fantástica e bizarramente familiar do show de David Lynch e menos ainda da estrutura narrativa inovadora ou da construção eficiente de mistérios da série de J.J. Abrams e Damon Lindelof.

Wayward Pines é amaldiçoado por diversos problemas, mas a escalação de Matt Dillon como protagonista, um ator que consegue declamar a frase "Você quase matou meu filho!" com a mesma entonação que ele diria "Adoro sorvete de pistache", talvez seja o mais evidente. Seu discurso é monotônico e carregado de uma empostação ridícula e seu rosto alcança no máximo umas duas ou três variações de expressões, sendo que o ator sempre escolhe a menos adequada para cada momento. Outros programas conseguiram se safar tendo canastrões como protagonistas (Prison Break vem logo à mente), mas só conseguiam faze-lo por conta de um roteiro bem estruturado.

A trama de Wayward Pines nasce de uma premissa interessante e com algum potencial, mas que é mal utilizada, focando nos ângulos incorretos e apressada por uma necessidade inexplicável de construir "viradas" a cada quadro (Shame! Shame! Shyamalan...). A construção dos principais dramas pessoais é rasteira e clichê, as resoluções dos conflitos são desencontradas e anti-climáticas, os acontecimentos mais expressivos não tem consequências à altura, pois o enredo quer partir imediata e rapidamente para a próximo momento "A-há!".

O programa, que visivelmente estrutura-se para ser um mistério, consegue abusar constantemente do pior inimigo do gênero: a exposição. Tudo é explicado da maneira mais literal possível. Não há espaço para ambiguidade e para que os expectadores confabulem acerca de suas próprias teorias. Uma decisão de direção tão errada que, a maior revelação chega na primeira metade de episódios, sem deixar qualquer espaço para dúvidas e simplesmente torna irrelevante tudo o que vem depois dela.

A enfermeira Pam, interpretada pela veterana, Melissa Leo, é a personificação dessa bola de neve expositiva que desce das montanhas geladas de Wayward Pines para atropelar o espectador desavisado. Assim que conhecemos Pam, ela mostra-se um mix de sadismo e reticente loucura que rouba todas as cenas (ainda que, dividindo a tela com Dillon, isso seja o equivalente ao proverbial roubar doce de crianças). A partir da revelação principal, ela vai veloz e inexplicavelmente tornando-se uma personagem amorfa e insossa até que (pobre Melissa) termina espremida dentro de um ridículo colante prateado tentando dar dramaticidade a uma cena que já está longe de qualquer salvação. 

Ao invés de trabalhar as questões existenciais e sociológicas que o seu cenário engendraria, Chad Hodge, o showrunner, prefere focar seus esforços na ação, em dramalhões rasos e mal construído, em proto-romances desnecessários e numa discussão sobre o autoritarismo conduzida sem qualquer sutileza. Nas mãos de bons diretores e roteiristas, a premissa de Wayward Pines poderia render muito mais mistério, tensão e arrebatamento.

Inclusive não é preciso forçar a imaginação para constatar o que a série poderia ter sido, pois os primeiros episódios apresentavam alguns bons indícios da direção correta. Neles, você tinha a participação de ótimos atores e atrizes que realmente captaram o espírito - Terrence Howard (Homem de Ferro, Crash) que fez um xerife maníaco e simpaticamente aterrorizante e Juliette Lewis (Assassinos por Natureza) que fez, bem, mais uma versão de Juliette Lewis, ou seja, alguém de quem você nunca sabe onde acaba a dissimulação e começa a loucura, são ótimos, porém não os únicos exemplos. Nos poucos episódios em que eles aparecem, o enredo foca em construir narrativas possíveis, expandir cenários, criar atmosfera e não muito depois que eles deixam o elenco, a história entra numa espiral auto-destrutiva sem muitas explicações.

Como M. Night Shyamalan ainda consegue financiamento para os seus projetos depois de anos de fracassos é o mistério mais intrigante que você vai encontrar em Wayward Pines. Diferente de todos os outros que são explicados em detalhes não solicitados, esse ainda vai ficar em aberto. Suspeito que não seja a última vez que ouvimos o nome que ninguém sabe pronunciar, mas espero que nenhum executivo da Fox aprove uma segunda temporada para essa série (Shyamalan já deu entrevistas falando que têm "boas ideias" para uma continuação). Eu já cumpri mais do que meu dever ao me arrastar até o final dessa primeira empreitada e não contem comigo para fazer o mesmo num possível retorno dessa bagunça. Vai ter quem goste, com certeza, mas como dizem por aí, opinião é como... bicicleta e cada um tem a sua.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

O oceano no fim do caminho - Neil Gaiman

Em busca de um tempo nada perdido

Por conta de resenhas e críticas que havia lido há tempos, comecei a ler o novo livro de Neil Gaiman, O oceano no fim do caminho, esperando algo mais calcado na realidade (não sei onde estava com a cabeça) e autobiográfico. Enfim, um livro que fugisse um pouco dos padrões de literatura fantástica do autor. Enganei-me fantasticamente. Gaiman não só está no seu universo, mas confortável e apaixonadamente entregue ao que ele faz de melhor. 

Recentemente, meu romance com os produtos da mente desse britânico andava um tanto quanto fatigado porque resolvi acompanhar o cara nas redes sociais e descobri que o ser humano Gaiman é muito menos interessante (e consideravelmente mais babaca) do que a sua obra. Além disso, Coisas Frágeis, o último livro que tinha lido dele é, quando muito, curioso e, na maior parte do tempo, apenas mais do mesmo. 

O oceano no fim do caminho, no entanto, reacendeu a fagulha desse amor literário. O livro é inegavelmente um produto da marca Gaiman, porém um exemplar do que ele consegue produzir de mais refinado. Uma história em que se consegue ouvir sua voz claramente e perceber a paixão que foi colocada naquelas linhas. Além de ser um trabalho de edição fenomenal, pois a trama foi visivelmente burilada até deixar somente o essencial para contar a história e cativar o leitor a maior parte do tempo.

Acompanhamos as peripécias de um garoto de sete anos sendo narradas por um homem de meia idade que, pelo contexto, parece ser um alter-ego de Gaiman relembrando a infância. O suicídio de um personagem dá início à trama principal, aparentemente libertando um mal desconhecido. Desconhecido para o protagonista, mas não para as místicas e poderosas mulheres do clã Hempstock, que já sabem de sua existência desde tempos imemoriais. De forma peculiar, o protagonista acaba servindo mais como uma âncora para o expectador maravilhar-se com essas intrigantes personagens femininas, a quem pertence efetivamente o foco da narrativa.

A linha entre a imaginação e o factual é muito tênue e é ultrapassada o tempo todo. Em um dos momentos mais tensos do livro, você tem certeza de que a ação é "real", mas a motivação pode vir tanto de algo fantasioso, como de algo muito mais bruto e cruel. Como em As aventuras de Pi, talvez a fantasia seja algo muito mais palatável do que a realidade, ou talvez a fantasia seja a realidade se assim lhe parece. Depende também de nós leitores e daquilo em que escolhemos acreditar, sendo que o enredo faz uso constante não só dessa ambiguidade, mas de muita simbologia.

Os símbolos parecem ao mesmo tempo serem óbvios e impossíveis de serem captados: seriam as Hempstock uma alusão a Santíssima Trindade? O oceano é uma imagem para o berço da vida ou simplesmente uma metáfora para o conhecimento e para o amadurecimento? A linguagem ancestral seria a palavra de Deus ou simplesmente uma alegoria para reforçar o poder do mito e das histórias? Em alguns momentos, as referências deixam de ser metáforas para quase simples e cruas comparações, e ainda assim é muito difícil agarrá-las com firmeza e certificar-se de seus significados.

Mantendo um de seus principais tiques narrativos, os personagens de Gaiman estão sempre envolvidos nas situações mais irreais possíveis e ainda assim eles se mantém reais. Você vê que eles não estão sendo levados pela história, mas que realmente a estão vivendo. Mesmo a naturalidade com que o protagonista de Oceano enfrenta determinadas situações fantásticas, parece mais verdadeira do que uma reação "apropriada" permitiria. É muito bem estabelecido que estamos falando não só de uma criança de sete anos, mas de uma com uma imaginação muito fértil, irrigada por leitura ininterrupta e por uma absoluta paixão por mitos e lendas.

O oceano no fim do caminho é um livro curto e rápido de ler, mas que remexe no nosso baú da infância e nos faz lembrar que a criança que fomos vai estar sempre dentro de nós e que aquilo que nos dava força há anos, estará sempre lá para nos mover mesmo em nossos momentos mais difíceis e desafiadores.  O livro não puxa você para o mundo dele, mas sim te empurra para dentro de si mesmo. Mais próximo do final, a vontade de chorar era quase irrepreensível e tenho consciência de as lágrimas vieram não pelos eventos que se desenrolavam no mundo de O oceano, mas pelas memórias e experiências que elas evocavam em mim mesmo.

Contudo, nem tudo funciona no livro e uma análise fria e técnica o colocaria na categoria "ótimo", para alguns leitores apenas "bom", e não "excelente/obra-prima" como escolhi classifica-lo. Ele, no entanto, conseguiu, especificamente comigo, transcender a relação de entretenimento puro e simples, para algo muito mais íntimo e seria uma injustiça avaliá-lo apenas pelos critérios técnicos. Aqueles leitores que se permitem enxergar o mundo não só com os olhos, mas também com a imaginação, provavelmente concordarão comigo.  

E você pode até esperar o filme (que segundo o IMDB já está em desenvolvimento e provavelmente será uma coleção de cenas oníricas fantásticas), mas para alimentar a criança que se escondeu dentro de você, bata a poeira que assentou-se sobre sua fantasia e deixe ela correr livre por alguma horas com as Hempstock. Você em algum momento vai se lembrar que já mergulhou no oceano no fim do caminho e que ele continua lá esperando sempre que dele precisar.