segunda-feira, 30 de julho de 2007

O castelo de vidro - Jeannette Walls

Memórias de uma infância desajustada


Pais podem ser vilões ou heróis dependendo da luz que se joga sobre eles, do momento em que se vive ou da conveniência. Jeannette Walls consegue descrever em suas memórias situações de fazer qualquer assistente social arrepiar-se até os ossos e ao mesmo tempo ser condescendente e até mesmo (esse é o lado dela da história) magnânima na maneira como perdoa à posteriori todos os deslizes e erros dos seus nada usuais progenitores.

Crescendo de cidade em cidade, largados à própria sorte, enquanto o pai alcóolatra perdia um emprego atrás do outro e sonhava com fortunas fáceis e a mãe entregava-se à depressão e a suas manifestações artísticas, Walls e seus quatro irmãos sofrem com a fome, a insegurança, habitações periclitantes e a incompreensão (às vezes até mesmo o desprezo) do resto da sociedade.

Uma qualidade da autora é a de não se entregar a um joguinho de apontar dedos ou de não entrar em psicologia barata para justificar qualquer dificuldade atual sua ou de seus irmãos com as atitudes dos pais no passado. Ela simplesmente conta a história e tenta, na maior parte do tempo, narrar os fatos objetivamente sem julgamentos (apesar de muitas vezes não conseguir disfarçar o orgulho, ou até uma ponta de arrogância, por ter conquistado uma posição na sociedade apesar de todas as situações em que os pais os colocaram.

O livro pode chocar alguns leitores mais sensíveis porque, apesar de a autora oferecer pequenas histórias supostamente cômicas ou emocionantes, pode-se também lê-las como relatos factuais de negligência e abuso infantil, como a indiferença paterna aos avanços de homens mais velhos sobre uma de suas filhas adolescentes enquanto esses garantiam o dinheiro necessário para mais uma dose. Nesse cenário, fica difícil não torcer pelas crianças e por capitulos mais alegres e "seguros" para eles (o que você sabe que vai acontecer pelo menos com a autora já nas primeiras linhas do primeiro capítulo).

Com uma prosa fácil e descomplicada, capítulos no tamanho exato de um deslocamento para o trabalho e personagens que mesmo assustadores, tornam-se apenas "peculiares" na descrição afetuosa e aparentemente sem rancor de uma filha, O castelo de vidro é uma leitura agradável e descompromissada para ler aos poucos e aproveitar cada momento da estranha infância dos irmãos Walls. 

Hedwig - Rock, amor e traição

Muita música e perucas, pouco filme


Direção: John Cameron Mitchell
Título original: Hedwig and the angry inch
Duração: 95 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Jan/2001

Hedwig é certamente um filme não convencional, o que por si mesmo chama a atenção. Contudo, nem todo filme "transgressor" alcança sucesso também como entretenimento ou arte. Hedwig tenta acertar nas duas áreas e acaba com os mesmos problemas de identidade de sua/seu protagonista: ora cômico e musical, ora hermético e simbólico. As músicas certamente são criativas e as caras e bocas de Hedwig garantem alguma diversão, mas o terço final, calcado em performances carregadas, te pegam meio despreparado depois de tanta caricatura no início e dá a impressão de ser mais raso do que pretende ser. Versão cinematográfica de um musical off-Broadway que ganhou fama no boca-a-boca, Hedwig tem aquele ar de "muito-com-pouco" quando diretores precisam colocar mais esforço na hora de decidir como filmar, o que filmar e onde filmar, porque a grana é curta, muito curta. Com muita música, perucas e sexualidade nada convencional (ainda que longe da variedade do pornô-kitsch Shortbus - o filme que sucedeu Hedwig na filmografia de John Cameron Mitchell), no mínimo, vale conferir pela interessante animação-música sobre a "origem do amor". PS.-O diretor-ator-protagonista é incomodamente semelhante à Brenda de A sete palmos epor boa parte do filme fiquei pensando que Rachel Griffiths fosse a intéprete da/o transsexual alemã.

A décima-segunda noite - Luís Fernando Veríssimo

Papagaiadas em Paris

Fazia algum tempo que não pegava nada do Verissimo para ler, principalmente porque as crônicas no jornal sobre futebol, banalidades ou ataques a políticos de direita não me atraem muito. Nos livros e principamente nos romances, no entanto, ele quase sempre manda muito bem.

O último romance que li dele foi O jardim do diabo, um policial instigante e divertido de ler, mas do qual não me lembro nem da história e muito menos do final agora. Antigamente era capaz de lembrar de cada detalhe do que lia ou assistia, mas a idade vai batendo e... Eu divago, assim como o personagem principal de A décima-segunda noite, eu divago... Je digresse, como diria Henri, o papagaio-narrador.

E isso é justamente a graça de "A décima-segunda noite": as digressões de seu narrador. O roteiro em si é baseado na "Noite de Reis" de Shakespeare (o título faz parte da coleção Devorando Shakespeare que reescreve grandes clássicos do autor) e como a história não foge muito de uma outra que já foi contada antes, o que vale mesmo é como ela é contada.

Henri é irônico, rabugento, arrogante e... francês. A paixão do autor por Paris e pela cultura francesa (especialmente a literatura) é evidente nas palavras e nas digressões do papagaio.

O livro é curto e uma ou duas tardes na praia devem ser o suficiente para terminá-lo - leitura fácil e agradável. Quem já leu e gostou de outros romances de Veríssimo, com certeza vai gostar desse também.

O tempo que resta

Sobre escolhas inusitadas

Direção: François Ozon
Título original: Le temps qui rest
Duração: 81 min
Idioma: Francês
Lançamento: Ago/2006

Um protagonista complicado, extremamente grosseiro, egoísta e infantil recebe a notícia de que lhe resta pouco tempo de vida. Nas próximas semanas, ele vai tentar fazer tudo o que sempre quis e não tinha tido chance e, ao longo do caminho aprender quais são as coisas que realmente importam na vida, até tornar-se uma pessoa mais sábia e completa (um pouco antes de partir em uma cena triste e comovente). Seria essa, dada a premissa, a evolução esperada do roteiro, porém, estamos falando de um filme francês. Então não há porque esperar qualquer lampejo de otimismo ou qualquer evolução do personagem no sentido de tornar-se uma pessoa minimamente agradável. É louvável a quebra de modelos pré-estabelecidos de um gênero (ou subgênero, no caso), mas entrei particularmente com o espírito "errado", resistente ao formato inesperado e simplesmente não consegui aceitar as escolhas do protagonista, incomodado o tempo todo com o desprezo pelas regras já acordadas da relação do ser humano com a morte. Longe de ser ruim, com seus longos e belos planos contemplativos, o filme não funcionou especificamente para mim, assim como imagino não vá funcionar para várias pessoas (já considerando apenas aquelas que se prestariam a assistir um filme francês pra começo de conversa). No final, valeu a experiência, mesmo que tenha sido apenas para perceber o quão mais fácil é aceitar a maneira como as pessoas decidem viver do que como elas decidem morrer.

A revolta de Atlas


Bastiões da moral e da virtude

A revolta de Atlas é um romance de mistério, mas ao mesmo tempo é um manifesto filosófico e é também um clássico da realidade distópica, no melhor estilo 1984. É classificado como ficção por seu enredo, mas poderia perfeitamente constar da categoria não-ficção por seus diálogos e discursos e sua defesa ferrenha de uma ideologia.

Na filosofia objetivista de Rand que permeia todas as páginas do livro percebe-se a influência de conceitos como o Übermensh de Nietzsche, a "mão do mercado" de Smith, a lógica de Aristóteles e muitos outros que de uma maneira ou de outra estão ligados ao individualismo e ao liberalismo defendidos pela autora. É uma argumentação contundente a favor do sistema capitalista e um painel sobre os horrores de um mundo em que a individualidade é sufocada pelas necessidades e desejos de uma massa etérea chamada de coletividade. 

Ao contrário do que normalmente se espera de bons personagens literários como ambiguidade e profundidade psicológica, os heróis de A revolta de Atlas são seres acima da humanidade, maiores que a vida, representantes de conceitos e idéias muito mais importantes do que eles mesmos. Longe de serem minimamente reais, não há como identificar-nos com eles, pois não são simples humanos, mas sim arquétipos, seres idealizados a serem admirados e espelhados pelas suas inabaláveis e coerentes ética e moral.

No sentido oposto, os vilões do livro são abjetos, odiáveis e aterradores e ainda que Rand dê uma chance de redenção a eles, transformando-os em meros elementos condutores para a ação de um mal maior e absoluto, ela não perdoa a fraqueza moral e falta de virtudes desses personagens. Ela, como seus protagonistas, é irredutivel e não concede compaixão aqueles que não fazem por dela merecer. Melhor ainda, ela considera compaixão justamente uma das raízes do fortalecimento do mal absoluto.

Dagny Taggart, diretora de operações da ferrovia Taggart Transcontinental, e Hank Rearden, CEO da siderúrgica Rearden Steel, são dois dos melhores personagens que já tive o prazer de acompanhar. Segui sua estória, temendo por seu destino e torcendo para que a cada novo desafio que seus inimigos lhes impusessem eles saíssem deles mais fortes e ainda mais inabaláveis. Por outro lado, odiar James Taggart ou o Dr. Floyd Ferris é fácil, catártico e libertador. 

Os mistérios que Rand vai criando ao longo do caminho desde a primeira página - "Quem é John Galt?", o crescente nível de ameaça, a trilha para o apocalipse de uma nação e talvez do mundo, garante que você continue a virar páginas e mais páginas e não querer largar mais o livro. Infelizmente, estamos falando de uma estória que, em letras pequenas, ocupa mais de mil páginas. E nem tudo são aplausos para elas.

O livro é extremamente repetitivo: a cada pequena evolução da estória, Rand pára e destila sempre os mesmos argumentos por vários parágrafos, reescrevendo a mesma coisa de centenas de maneiras diferentes. Além de interromper o fluxo da narrativa com uma frequência irritante, o discurso passa a ter um aspecto "lavagem cerebral" que é justamente a ferramenta comumente utilizada pelos que se opõe a ela - vide novamente o clássico 1984.

Um livro fantástico que só não alcança a perfeição porque faltou um editor de pulso firme que podasse a verborragia da Sra. Rand.

Vernon God Little

Exageros texanos

Vernon é um adolescente texano vivendo em uma cidade pequena conhecida apenas como a "capital do molho barbecue do meio-oeste do Texas" até que um dia seu melhor amigo dizima metade dos colegas de classe e estoura o próprio crânio. Sem um assassino para crucificar, Vernon, mesmo com evidências pifias, torna-se o bode expiatório da chacina.

A metralhadora satírica de D.B.C Pierre atira para todos os lados, mas é realmente o espetáculo midiático que transforma até mesmo as mais vis tragédias em entretenimento o principal alvo. Um festival de personagens bizarros desfila ao longo da estória e depois de um tempo você já sabe que, por mais ameno que possam parecer, eles vão acabar reduzido a algum vício norte-americano que o autor gostaria de execrar.

Escrito em um idioma regionalizado (o "texano"), em muitos momentos é quase impossível entender exatamente o que o autor está querendo dizer - li a maor parte no original e alguns capítulos na versão em português. Infelizmente, apesar da ótima tradução, muita coisa se perde por causa da quantidade absurda de gírias e expressões locais que dificilmente conseguem soar parecidas no nosso idioma.

Vernon God Little ganhou espaço na estante por ter vencido o Man Booker Prize, o principal prêmio literário dos países de língua inglesa (não incluindo o maior deles - os Estados Unidos) e porque algumas críticas comparavam o protagonista com Holden Caulfield de O apanhador no campo de centeio, um dos livros que mais gostei de ler. 

Infelizmente, Vernon está tão próximo de Holden, quanto Bruna Surfistinha de Capitu e ainda que a revolta juvenil seja muito próxima, Vernon não tem a profundidade do personagem de Salinger. Além disso, o ritmo do livro é descompassado e se em alguns momentos a leitura flui, em outras ela fica presa em reminiscëncias desnecessárias ou em eventos que não são nem interessantes em si mesmo, nem contribuem para o avanço do roteiro como um todo.

Vernon God Little até tem alguns lampejos de brilhantismo, pequenos excertos de fina ironia e diálogos inteligentemente imbecis. Contudo, em grande parte é só uma sequëncia de personagens caricatos e eventos absurdos ou incoerentes. Não me arrependo de ter ido até o final, principalmente porque depois de um tempo, você acaba se apegando a Vernon e querendo saber qual será seu destino, mas também não é o tipo de livro que eu não poderia passar sem ter lido.

A mão do diabo

Faltou direção

Direção: Bill Paxton
Título Original: Frailty
Duração: 100 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Abr/02

Terror é um gênero que está sempre carecendo de boas produções e, na falta de boas alternativas recentes que eu já não tivesse assistido, resolvi procurar na net dicas de filmes mais antigos que eu tivesse deixado passar na época. Uma lista qualquer de "os melhores" colocou entre os seus cinquenta melhores essa pérola, A mão do diabo, estréia de Bill Paxton como diretor. Daí vem a explicação para uma resenha de um filme de 2002 que está longe, bem longe, de ser um clássico.

Acredito que se você for ignorar completamente detalhes técnicos como direção, atuação, fotografia e outros, até há uma boa estória a ser contada em algum lugar, ou seja, se eu tivesse apenas lido o roteiro ou se alguém tivesse me contado a estória eu talvez tivesse gostado. Assistir ao filme, no entanto, exige muito mais paciência do que a relativa criatividade e qualidade do roteiro mereceria. 

Matthew McConaughey não tem o perfil para o papel de narrador que lhe cabe - convenhamos que ele não é um ator de verdade e só funciona quando seu tipo físico e personalidade são idênticos aos necessários para o papel - e Bill Paxton até se esforça, mas iluminação, efeitos, edição, escolha de ângulo de câmeras, tudo, absolutamente tudo, conspira contra qualquer esforço de dar credibilidade a seu personagem e a sua atuação - é o diretor Paxton sabotando o ator Paxton.

Não tenho como saber se foi deliberada a escolha de fazer com que o filme ficasse com o amadorismo de um daqueles feito direto para a TV ou com a qualidade daqueles da sessão da tarde da minha infância nos anos oitenta - boa parte da estória, afinal, se passa nessa época. O que importa é que o resultado é, por falta de um vocabulário mais amplo para me expressar: tosco, simplesmente tosco. Transições de cena com "fade-out" estilo apresentação de powerpoint, trilha sonora requentada de filmes antigos de terror, takes preguiçosos com a câmera sempre com o mesmo tipo de enquadramento, iluminação equivocada e muitos outros erros (ou escolhas deliberadas completamente sem sentido) afundam completamente o filme.

Só não leva a nota mínima, porque realmente o roteiro até que tem seu valor.

Em tempo, a sinopse: homem religioso no interior dos EUA acredita ter recebido uma missão de deus para matar demônios e ele e seus dois filhos, uma criança e um adolescente, começam a deixar uma trilha de sangue enquanto cumprem a vontade do Senhor.

Feriado de mim mesmo

Originalidade oculta

Santiago Nazarian escreveu um divertido livro entitulado Mastigando Humanos sobre as elocubrações de um crocodilo vivendo nos esgotos de São Paulo. Faz muito tempo que li e não me lembro praticamente de nada do livro, apenas de que gostei bastante dele. Na mesma época, comprei um livro anterior do autor chamado Feriado de mim mesmo e só agora fui lê-lo. 

Não sei se,nesse tempo, fui eu que a cada nova estória fui imprimindo menos valor a cada uma que somava-se a pilha de estórias anteriores ou se realmente o autor ainda não tinha amadurecido nesse livro e a originalidade mostrada em Mastigando não estavam ainda presentes em Feriado.

Uma das maneiras de se prender a atenção de alguém é criar uma "lacuna de conhecimento" que ative seu instinto natural de curiosidade e a estória de Feriado de mim mesmo faz isso por premissa: existe algo acontecendo que você não sabe o que é.  Uma estória sobre paranóia em que um sujeito solitário vivendo em um apartamento claustrofóbico começa a acreditar que alguém está invadindo sua casa e alterando sua rotina. 

O grande desafio aqui não é atiçar, mas sim manter a curiosidade aguçada, dado que seu leitor provavelmente já sabe os possíveis resultados desse tipo de roteiro. A trama básica subjacente pode ser: violência (alguém realmente está perseguindo a pessoa), sobrenatural (espíritos ou outras entidades são responsáveis pelos eventos), psicológica (a outra pessoa na verdade é a própria pessoa) ou fantasiosa (a outra pessoa é ela mesma, mas deslocada no tempo). Se você estiver apontando para qualquer uma dessas possibilidades em algum momento ou insinuando quaisquer uma das outras, você está jogando em terreno conhecido e sua solução não terá um retorno recompensador para o leitor, o qual sabe disso e começa a desconfiar já nas primeiras páginas.

O grande problema é que, mesmo que sua solução seja diferente dessas quatro apresentadas, não apontar para essa possível nova em nenhum momento faz com que o leitor se desinteresse mesmo assim. E essa é a falha fatal de Feriado, que somada a um protagonista cuja companhia não é das mais agradáveis, torna o livro arrastado e repetitivo mesmo que no conjunto havia um quê de originalidade na obra.

A volta do parafuso


Ininteligivelmente amedrontador

Acho que li esse livro pela primeira vez quando era mais novo, mas com certeza foi uma versão mais curta e com um vocabulário bem mais simples. Tinha uma vaga memória do clima sombrio e da atmosfera aterradora da estória, mas não me lembrava nem um pouco de quão complicada era sua leitura. Assim como o impenetrável Edgar Alan Poe, Henry James é extremamente prolixo com construções de frases complexas e vocabulário enredado , uma marca bem característica da literatura da época vitoriana.

Ainda que quando com uma só palavra, James poderia ter dito o mesmo que ele diz com quinze, a rebuscada redação ajuda a transportar o leitor para uma época remota e só dessa maneira você consegue minimamente contextualizar algumas passagens que em um cenário contemporâneio parecem leves demais ou simplesmente sem sentido. Durante linhas e linhas James descreve o quão horrível é a situação da governanta e das crianças protagonistas, mas não há nada que indique que algo realmente mais aterrador tenha acontecido que não o possível relacionamento entre a antiga governanta e um criado o qual, por sua vez, não parece merecer a alcunha "fascínora", quando sua ação mais infame parece ser a de "dar-se ares de aristocrata".

Um dos aspectos mais interessantes é a narração em primeira pessoa da governanta que nos coloca mais próximo dos acontecimentos e limita nossa compreensão dos fatos para além do que a personagem vê ou pensa sobre eles. Essa ambiguidade narrativa torna o desenrolar dos eventos (ou a mais completa falta deles) em algo muito mais interessante do que deveria ser.  Apenas nas entrelinhas é que percebe-se a presença de uma segunda estória, provavelmente a que contém os "fatos reais", onde descontados os pré-conceitos e as emoções da governanta, ações e falas dos outros personagens carregam-se de significados muito diferentes.

Ainda que praticamente ininteligível por causa de sua estrutura formal e rebuscada, A volta do parafuso consegue criar a ambientação necessária para  o horror surgir, além de ser ambíguo o suficiente para deixar o leitor com dúvidas sobre o quanto desse terror tem fundamentos.

Recomendado, mas com ressalvas.

Zodíaco


Excesso de zelo

Direção: David Fincher 
Título original: Zodiac 
Duração: 157 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Jun/2007


Continuando ainda na onda das microcríticas com mais um representante da série "ótimo filme chato"... 

Zodíaco conta a estória de um serial killer que aterrorizou os EUA na década de 70 e foca nas investigações da polícia e da imprensa, em especial no afinco com que um cartunista fascinado por enigmas se dispõe a desvendar os mistérios que cercam o assassino. Não faltam ao filme cenas carregadas de tensão (como a do casal à beira do lago), o clima noir é muito bem conduzido e São Francisco, palco da maior parte da (in)ação, é uma cidade perfeita para um diretor que saiba onde e como posicionar suas câmeras e David Fincher é um deles.

Fincher é preciosista, atento aos detalhes e bastante estiloso. Quando coloca todas essas qualidades no desenvolvimento de um roteiro pop e "underground" gera filmes imbatíveis como Seven - os sete pecados capitais, O clube da luta ou, com menos maestria, O quarto do pânico. Quando, no entanto, resolve esmiuçar todos os detalhes, até mesmo os mais entediantes, de estórias reais, acaba com filmes tecnicamente irretocáveis, mas desprovidos de alma, como A rede social e o próprio Zodíaco

Porém, no caso de Zodíaco, se tivesse que apontar apenas um motivo para explicar o porque do filme simplesmente não funcionar como entretenimento seria o excesso de cenas. Três horas para contar uma estória na qual os principais desdobramentos podem ser listados em apenas uma mão é um pouco demais - tive que assistir em duas sessões e quase deixei o final para uma terceira sentada à frente da TV. 

Não dá para dizer que não é muito bem feito, mas só deve ser interessante para quem já conhecia a estória e queria muito saber todos os mínimos detalhes dela - e é pouco provável que algum leitor desse blog enquadre-se na categoria...

Coisas frágeis - Neil Gaiman

O problema de Gaiman


Coisas frágeis / Fragile things é um compêndio de várias histórias de Neil Gaiman escritas ao longo de anos, para diferentes fins e em diversos contextos. No Brasil, essa seleção foi lançada em dois volumes e, como li o original, não sei exatamente quais dos contos, poemas ou pequenas novelas ficaram em cada um deles, então, de certa forma, estou avaliando ambos aqui.

É impressionante notar o quanto a grande maioria das histórias, para não dizer todas, tem a marca "Gaiman" transbordando do início ao fim. Como geralmente acontece, esse tipo de comentário costuma ser o principal atrativo e a maior detração para qualquer tipo de obra cultural. Para os leitores mais antigos, isso pode ser tanto um alento - encontrar exatamente aquilo que se está esperando, quanto uma frustração - encontrar apenas um caça-níquel composto do que parecem ter sido rascunhos de outras obras ou uma reciclagem de material já utilizado. 

Uma história bastante representativa dos cacoetes de Gaiman e dos argumentos do parágrafo anterior é certamente A vez de outubro / October in the chair. Nela são evidentes três dos principais artifícios que você vai encontrar na maioria dos livros e contos do autor:

1) Personificação de conceitos: aqui os meses do ano são personagens que se reúnem para contar histórias relacionadas a si mesmos. Em Sandman temos os Perpétuos (Sonho, desejo, morte etc.), em Deuses Americanos / American Gods temos novos e antigos deuses e por aí vai. Ess é um recurso do tipo "em que time que está ganhando não se mexe" de Gaiman. Pegue um elemento literário ou da cultura já bem estabelecido e utilize em um narrativa moderna ou com um olhar completamente diferente do contexto original. Ele não é o único autor a lançar mão desse recurso (J.K.Rowling fez bilhões dessa maneira), mas certamente é um que abusa dele.

2) Crianças convivendo com o extraordinário ordinariamente: Coraline, os garotinhos fantasmas em Sandman, Ninguém/Nobody Owens em The Graveyard Book e outros personagens do tipo aparecem constantemente em seus trabalhos. A inocência de crianças vivendo situações que seriam aterradoras para os adultos é um contraste sempre interessante, mas cansativo quando usado à exaustão.

3) Coitus interruptus: a história abre, elementos extraordinários vão sendo adicionados, algumas pistas são jogadas e, por fim, a ela é interrompida antes que uma conclusão satisfatória seja alcançada. Em Coisas frágeis / Fragile things, esse cacoete alcança níveis irritantes, e na grande maioria das histórias, é impossível distingui-lo de simples "preguiça" ou de inaptidão - Pó amargo / Bitter grounds, Como falar com garotas em festas / How to talk to girls at parties e muitas outras sofrem desse problema.

Não me entendam mal, continuo preferindo Gaiman a muitos outros autores mais "sérios", mas a "genialidade" que via nele na adolescência desapareceu completamente em um nível que já não sei dizer se um dia esteve mesmo lá. O autor fez sucesso com um estilo e manteve-o para o resto da vida sem arriscar. 

O próprio Gaiman em várias histórias anteriores e em algumas nesse livro levanta o poder das histórias e como elas parecem sempre ter estado lá, apenas mudando de aspecto e se adaptando a novos tempos e situações como se houvesse somente um número limitado de histórias "em estado bruto". 

Sobre a seleção em si de histórias de Coisas Frágeis, destaco algumas das melhores: 

Um estudo em esmeralda/ A study in Emerald que mistura Sherlock Holmes e o universo de H.P. Lovecraft em um conto muito bem escrito que respeita os estilos de ambos os autores homenageados e ao mesmo tempo cria algo único a partir dessa fusão. 

O problema de Susan / The problem of Susan é uma releitura do final de As Crônicas de Nárnia, um livro que abandonei já nas primeiras páginas e cujo final (aqui explicitado) só deu argumentos a favor dessa decisão. Mesmo sem ter lido, fico feliz com a "versão de Susan" proposta por Gaiman que deve ter deixado felizes todas as pessoas sensatas que devem ter achado um absurdo a escolha de C.S. Lewis para o destino de sua personagem.

Para quem leu Deuses Americanos/American Gods, O monarca de Glen/The monarch of Glen é uma estória deliciosa (mas, como sempre, derivativa) protagonizada por Shadow, o personagem principal do livro, e que se passa dois anos após os eventos finais. Ela conta ainda com a participação de Mr. Alice e Mr. Smith que são os protagonistas de outro ótimo conto do livro Lembranças e tesouros / Keepsakes and treasuries. 

Neil Gaiman é sinônimo de texto enxuto, rápido, sem grandes arroubos narrativos, derivado de ideias e personagens clássicos com uma pitada de elementos góticos e sombrios. Coisas frágeis / Fragile things é um ótimo ponto de partida para a obra desse autor porque contém todos os artifícios que o caracterizam e pelo mesmo motivo é mais do mesmo para os veteranos... mas mais do mesmo de algo bom geralmente não é demais.

Outras resenhas de livros do Crítica em Série:

As aventuras de Pi
A volta do parafuso

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Saneamento básico, o filme

Cinema básico

Direção: Jorge Furtado
Título original: Saneamento Básico - O filme
Duração: 112 min
Idioma: Inglês
Lançamento: Jul/2007

Depois do ótimo O homem que copiava, acho que inconscientemente subi bastante a barra para o cinema de Jorge Furtado. Foi nesse contexto que, apesar das resenhas bastante positivas que havia lido há muito tempo e de o elenco contar com atores de peso como Wagner Moura, Camila Pitanga, Lázaro Ramos e a ótima Fernanda Torres, Saneamento Básico simplesmente não funcionou pra mim e ficou longe de atingir as expectativas. O filme certamente tem seu apelo e faz crítica social com leveza e uma boa dose de humor, porém, ao mesmo tempo, ele se leva a sério demais para que algumas cenas ridiculamente forçadas consigam se encaixar no todo. Para piorar, os atores parecem não se esforçar muito (mesmo considerando que o roteiro não exija muito deles) e cumprem com sua função quase burocraticamente, sem sair de sua zona de conforto - basicamente dão a seus personagens as mesmas características que já usaram em trabalhos anteriores. Ao mesmo tempo, o filme não chega a ofender e se em uma tarde ou noite modorrenta, você esbarrar com ele na televisão, pode ser uma opção para passar o tempo.