quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

As aventuras de Pi - O livro

O espírito humano e a arte de contar uma estória

A "regra das vinte páginas", aquela que diz que é possível saber se vale a pena continuar lendo um livro ou não dependendo do efeito das primeiras vinte páginas sobre o leitor, não se aplica para As aventuras de Pi. Como muitas das melhores obras da literatura, essa só demonstra toda sua genialidade quando a última página do livro é virada.

Podem ser apenas os próximos minutos ou podem ser os próximos dias, mas pelo menos por algum período mínimo o leitor vai ficar pensando na estória literal que acabou de ser contada, depois pensará nas camadas metafóricas do texto, depois nos símbolos espalhadas ao longo das mais de 200 páginas, depois passará por uma reflexão interna sobre seus próprios valores, depois... Enfim, é impossível embarcar nessa jornada (um clichê muito adequado para esse caso) e sair dela incólume.

Simplesmente ao olhar a capa do livro você sabe o que vem pela frente: estamos falando da improvável estória de sobrevivência de um garoto à deriva em um pequeno bote com um tigre de bengala. Contudo ao ir desvendando cada uma das camadas do livro, você percebe que aceitar essa definição é o mesmo que dizer que o Novo Testamento é apenas a biografia de Jesus Cristo.

As Aventuras de Pi é um livro magistralmente escrito, cada parágrafo, frase ou palavra é sabiamente escolhido e como todas as boas estórias contadas em primeira pessoa, o narrador influencia o enredo, criando um filtro de emoções, pensamentos e ideologias que modifica e muito a interpretação da mesma. 

Informações técnicas dos campos da zoologia e botânica são cuidadosamente entrelaçadas aos acontecimentos e um mosaico perfeito é construído aos poucos onde cada peça se encaixa para fazer com que o todo faça sentido. Todos os fundamentos apresentados casualmente na primeira parte do livro servem para garantir a factibilidade dos eventos na segunda parte e as duas primeiras garantem à terceira parte, formada na maior parte por diálogos, uma profundidade emocionante.

A narrativa de Pi não é linear, principalmente a da segunda e maior parte que versa sobre os dias de Pi à deriva, o narrador vai e volta contando estórias do começo e do fim da viagem, um capítulo inteiro perpassando desde o primeiro dia até o último, um outro que fala de um evento específico. Uma estrutura narrativa que tenta replicar as recordações de um naufrago. 

Apesar de sabermos desde o começo de que o protagonista vai ficar vivo até o final já que ele está narrando a estória, todos os momentos tensos do livro conseguem manter o nível de angústia esperado, já que não sabemos "como" o protagonista chegou ao final ou o que aconteceu com os outros personagens. 

Escrever muito mais sobre o assunto é estragar a experiência, uma que pode acabar com sorrisos, em expressões de espanto ou mesmo em lágrimas. Essa amplitude de emoções é mérito da habilidade narrativa de Pi e do autor Yann Martel, mas também do próprio leitor que traz a própria bagagem de valores e  percepções e interpreta a estória a sua própria e peculiar maneira.

Acho que uma das passagens do livro que define perfeitamente o meu sentimento em relação a ele seria:

"My greatest wish — other than salvation — was to have a book. A long book with a never-ending story. One I could read again and again, with new eyes and a fresh understanding each time. Alas, there was no scripture in the lifeboat."

Yann Martel constrói um livro denso como uma escritura ou um livro sagrado (já que esse é um tema onipresente), para o qual você pode voltar metaforica e literalmente muitas e muitas vezes, aproveitar um novo ângulo e talvez entender mais sobre si mesmo. As "aventuras" de Pi são um veículo para algo muito maior do que a sua estória: uma discussão sobre crença, sobre fé, sobre religiões e principalmente sobre o poder das estórias em nossas vidas. 

Observações adicionais:

- Life of Pi ganhou o Booker Prize, o "Oscar" da literatura de língua inglesa, em 2002. Mais do que merecido.

- A polêmica sobre o plágio ao material do Moacir Scliar ("Mas e os Felinos") é válida, mas não altera em nada a qualidade do livro de Martel. Foi inspirado sim, sem a menor sombra de dúvida, mas com propósitos e resultados completamente diferentes.

- Vou agora mesmo assistir ao filme de Ang Lee e ver como essa obra-prima se comporta ao ser contada com imagens e comprimida em apenas duas horas. O desafio é realmente grande porque o livro não parece prestar-se a uma adaptação. Voltamos com mais uma crítica sobre As aventuras de Pi amanhã!

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